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Varanasi, a cidade dos mortos

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O dia amanhece preguiçosamente. Distante da confusão permanente nas margens do Ganges, surge o farfalhar das penas de uma garça, que com beleza e graça, sobrevoa a superfície ondulada do rio. Ao fundo, ocultas pela fumaça, que emana de forma permanente das margens,  estranhas torres sobem em direção ao céu.
Ao longe, já se pode ouvir o ruído da cidade despertando. Porém, ainda é um som fraco, que não distrai a garça de sua busca incessante por comida. A ave pousa suavemente sobre um montículo de junco e detritos perto da margem esquerda. Ali ela não espera por peixes ou pequenos crustáceos. A ave trepa com delicadeza entre pedaços de galhos, detritos e sujeira. Sem que possa perceber, a pequena ilha em que ela está pousada desce o rio lentamente, girando ao sabor das águas quentes. A Garça arranca com dificuldade algo comestível, que engole rápido, com indisfarçável prazer. É um olho humano…



A pequena ilha é só um dos muitos corpos humanos que boiam à mercê das correntezas do rio Ganges.

zona 33, varanasi, india

Aqui é Varanasi, terra dos contrastes. Mais do que em qualquer outro lugar, neste lugar as contradições da vida humana se manifestam: a vida e a morte, esperança e sofrimento, a juventude e a velhice, a alegria e o desespero, a riqueza e a pobreza. Esta é uma cidade onde se celebra tanto a vida quanto a morte. Esta é a cidade em que coexistem a eternidade e a curta existência humana. Este é o melhor lugar para uma compreensão do que constitui a Índia, a sua religião e cultura.
Há muitas cidades sagradas em todo o mundo. Praticamente toda cultura da terra elegeu para si, em algum momento, uma cidade sagrada.
De todas as grandes cidades sagradas do mundo, uma das que mais se destaca por seus incontáveis mistérios, surpresas e forte impacto visual é Varanasi, a cidade dos mortos na Índia. Varanasi é considerada também a cidade mais sagrada do Hinduísmo. Ela é tão antiga que não se sabe quando foi fundada. Segundo as tradições dos brâmanes, Varanasi foi fundada por Xiva há mais de 5 000 anos atrás, como uma das sete cidades sagradas do hinduísmo. Alguns estudiosos consideram a hipótese de que a cidade tenha surgido há cerca de 3 000 anos atrás. No entanto, dados arqueológicos apontam sua origem para anterior a 4000 anos atrás, quando o local era um centro religioso dedicado a Suria, o deus do sol. Talvez isso explique a questão do nome.
A cidade era anteriormente conhecida pelo nome de Kashi (em sânscrito e hindi : Kasi), que significa “a bela”, sendo Kasi: ‘brilhante (sol).
Varanasi foi um grande centro comercial e industrial, tendo se destacado na produção e distribuição de marfim, seda e perfumes. A cidade atingiu o posto mais respeitado entre as cidades da Índia durante os tempos de Sidarta Gautama, quando foi a capital do Reino de Caxi. Varanasi chegou a tornar-se um reino independente durante o século XVIII e, sob a tutela do Império Britânico, tornou-se o centro econômico e religioso da região.

Peregrinações a Varanasi

Varanasi é uma das principais cidades de peregrinação hindu. De acordo com a mitologia, a mão esquerda de Sati (esposa do deus Shiva, que se matou no fogo) caiu na cidade. Lá, cada qual das diversas divindades que compõe o panteão tem seu próprio templo.
De acordo com o hinduísmo, quem morre em Varanasi (ou menos de sessenta quilômetros da cidade), é liberado do ciclo da reencarnação. Banhar-se no rio Ganges purifica os pecados.

zona 33, varanasi, india
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Talvez isso explique porque o Ganges, um dos maiores rios do mundo em fluxo de água recebe tanta contaminação ali. Mais do que em todos os 6 rios que confluem para formar o Ganges juntos.
A poluição do Ganges tem afetado as 400 milhões de pessoas que vivem próximas de suas águas.

Desde a década de 90 e especialmente nos últimos anos, as condições da água do rio e afluentes têm ficado abaixo das consideradas aceitáveis pela OMS, já que o despejo irregular de esgoto tem aumentado, inclusive a partir de um hospital que atende tuberculosos.

Deu sede?
varanasi, india

Segundo a tradição, todos os hindus devem visitar e se banhar no rio pelo menos uma vez na vida.
Todas essas crenças tornaram a cidade o destino principal de doentes e idosos, que querem passar seus últimos dias na cidade sangrada, à espera da morte. Ao longo do Ganges, estão alinhadas várias residências projetadas para acomodar os moribundos. O rio também é o centro do crematório da cidade.

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 O principal destino dos peregrinos que visitam a cidade são os ghats , nome dado aos degraus de pedra que levam ao Ganges. Ao amanhecer, você pode ver homens e mulheres que fazem os seus banhos de purificação no rio enquanto homenageiam o deus-sol Surya. Cada uma desses degraus, construídos no século XVIII , tem um nome e uma função especial. Os ghats de Mani Karnika e Harishchandra são os crematórios principais. No Ghat de Pancha Ganga acredita-se que cinco rios convergem seu fluxo sagrado. No total, a cidade conta com mais de 100 ghats.

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 A sujeira do rio não impede as pessoas de nadarem, se banharem e até beberem daquela água, que eles acreditam ser purificadora. Todos os anos milhares de indianos vão para Varanasi. Muitos para celebrar e rezar aos deuses, e muitos outros para morrer.

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Um dos lugares mais famosos de Varanasi são os degraus perto do centro da cidade. Ali estão  os sadhus, eremitas manchados de fuligem que ficam horas e horas meditando (na verdade eles podem ficar anos).
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O lugar parece uma festa permanente. Mulheres com roupas tradicionais se aproximam dos turistas com propostas de serem fotografadas por dinheiro. Europeus caminham em meio a multidão, tentando não encostar no esgoto, pessoas mexem em celulares enquanto grupos de japoneses assustados fotografam os prédios antigos, usando máscaras cirúrgicas com medo de infecções. Doentes de todos os tipos, deformados com pústulas purulentas, com feridas abertas cheias de moscas, pessoas que já parecem mortas andando sem rumo…
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Há uma variedade plena de sujeitos de pele curtida com dreadlocks, anormais, iluminados, loucos e mendigos, prostitutas, vendedores ambulantes, vacas,  massagistas, traficantes de haxixe, artistas, e todo tipo de pessoa que você puder imaginar. Nenhuma multidão do mundo é comparável em diversidade.
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Na geografia religiosa do hinduísmo, Varanasi é o centro do universo. Uma das cidades mais sagradas para os hindus como uma espécie de linha entre a realidade física e da eternidade da vida. Aqui os deuses descem à terra, e um mortal atinge a bem-aventurança. Este é um lugar sagrado para viver, e um lugar abençoado para morrer. A opinião geral é que este é o melhor lugar para se alcançar a felicidade.

Os corpos que queimam nas margens

O maior Ghat na cidade, que é usado para a cremação é Manikarnika. Aqui, cremam cerca de 200 corpos por dia, e as piras funerárias ardem dia e noite. Famílias trazem seus mortos para cá, na esperança que o morto interrompa o ciclo de reencarnações, ou na pior das hipóteses, reencarne com um karma limpo.
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Devemos notar que o que para nós é uma vida estranha e terrível, para eles é só uma parte de sua cultura. Uma fatia substancial de um bilhão de indianos deseja morrer em Varanasi ou simplesmente queimar o seu corpo ali.
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Os crematórios estão abertos ao ar livre liberando a fumaça 365 dias por ano, 24 horas por dia. Centenas de corpos de toda a Índia e até no exterior são trazidos até aqui todos os dias. Mal chegam e seguem para ser queimados.
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O volume de mortos é tão grande que chega a formar filas. Eles aguardam até que os corpos sejam totalmente consumidos pelo fogo. O cheiro de carne humana queimada pode ser sentido há quilômetros. Mas os homens que trabalham ali já não sentem mais. Se habituaram ao processo, que aos olhos não acostumados pode parecer bárbaro.

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Com varetas de bambu eles empurram pedaços mal queimados de pessoas para o fogo. É importante que o fogo consuma toda a carne, até só haver as cinzas. As famílias ricas negociam madeira de sândalo de melhor qualidade, enquanto os mais pobres tem que se contentar com galhos e até palha.


Os mercadores da morte

A despeito de toda a religiosidade dos rituais fúnebres, o que arde também nos degraus é um intenso mercado financeiro derivado do negócio de queimar carne humana. Vende-se de tudo. Mortalhas, flores, incenso, madeiras de diversos tipos. Homens negociam sem parar ao som do permanente crepitar das chamas que engolem mulheres, homens e idosos, eventualmente vomitando um pedaço de braço ou perna ainda não queimada.

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Ninguém liga.

Com sua barriga grande e jaqueta de couro, surge Sures. Ele anda com certo orgulho para cima e para baixo entre as fogueiras, supervisionando os empregados, vendendo madeira, coletando a receita. Ele é o chefe burocrata daquela área. A burocracia é gigante e confusa, mas não impede os homens de queimarem até 400 pessoas mortas por dia.

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Os turistas recém-chegados são imediatamente reconhecidos por seus olhares assustados, o medo transparece em seus olhos, e eles sempre se mantém a uma certa distância das piras. Os indianos sabem que em sua maioria os turistas são bem intencionados e fáceis de manipular. Não tarda, surgem pessoas pedindo ajuda para pagar o funeral de seus parentes. Um quilo de madeira custa entre 400 e 500 rúpias, algo entre 17 e 20 reais.

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Os turistas raramente se recusam a ajudar as família do falecido, e doam pelo menos um par de quilos para as pessoas que imploram ajuda. Nem todos que alegam precisar da ajuda de fato precisam. Ali existem golpistas como em todos os lugares. Pra começar, o preço da madeira é sempre inflacionado para o turista desavisado. Na verdade, ao invés de custar 500 rúpias, o quilo da madeira custa a partir de 4 rúpias.

Esses caras tiram proveito do senso comum que acredita que queimar os mortos é caro. Para queimar o corpo, é preciso de 300 a 400 kg de madeira e leva até quatro horas.

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A cerimônia de funeral inteira custa a partir de 4000 rúpias, ou algo perto de 80 dólares. Os mais ricos adicionam sândalo às piras funerárias para disfarçar o odor. Aí sai caro para os padrões indianos. Um quilo de sândalo não sai por menos de 160 dólares.
Diz a lenda que quando o marajá morreu em Varanasi, seu filho ordenou que o fogo fosse completamente feito com sândalo, e espalhou ao redor da pira de seu pai esmeraldas e rubis. Jogar gemas preciosas em meio à piras funerárias é uma pratica recorrente ainda hoje entre as castas mais ricas da índia.

Nas margens restos de flores, ramos, cordões, bacias e lixo se acumula todos os dias.

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As pessoas que lidam diretamente com os mortos são da casta mais baixa, os dalit ou “intocáveis”, como são chamados. Eles são designados como “shudras”, grupo formado por trabalhadores braçais, considerados pelos escritos bramânicos, sobretudo o Manava Dharmashastra, como “intocáveis” e impuros.

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Os intocáveis na sociedade hindu são aqueles que trabalham com trabalhos considerados indignos, sujos, lidando com os mortos (animais ou pessoas), com o lixo, ou outros empregos que requerem constante contato com aquilo que o resto da sociedade indiana considera abjeto e desagradável. São considerados individualmente imundos, impuros, e portanto não podem ter contato físico com os ‘puros’, vivendo separados do resto das pessoas. Ninguém pode interferir na sua vida social, pois os intocáveis são considerados menos que humanos e não são considerados parte do sistema de castas. Embora tenha sido abolido pela constituição, observa-se, na prática, que muitas comunidades continuam ligadas aos empregos que lhes eram destinados tradicionalmente, casam-se entre si e sofrem a discriminação da sociedade circundante, o que pode ser visto como resquício da sociedade de castas.
Umas das principais restrições enfrentadas por Dalits ao longo de toda a história consta a de não poderem rezar ou adentrar os templos. Isso é objeto de crítica desde a Índia medieval por parte de grandes reformadores sociais e poetas como Kabir. Nenhum intocável pode entrar no templo, pois iriam poluí-lo.

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Assim, é comum vermos dalits peneirando restos de cinzas, ossos e carnes podres em busca de jóias perdidas. Por ser considerada uma atividade “impura”, os parentes não estão autorizados a retirar as jóias dos mortos. Então eles estão sempre ali, limpando e vasculhando terra queimada em busca de uma corrente de ouro, um anel de diamante, três dentes de ouro… Todo esse material encontrado eles vão vender.

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Pessoas de volta à vida

Se você acha estranho o sistema de castas da índia, pode se espantar ao saber que até os mortos são categorizados e tem seu lugar certo de cremação de acordo com sua morte. Em Manikarnika queima-se apenas os mortos de causas naturais. Um quilômetro antes, no Hari Chandra Ghat, são levados ao fogo os suicidas e as vítimas de acidentes. Perto dali está o eletrocrematório onde queimam os pobres, que não arrecadam dinheiro suficiente para a lenha. Geralmente são os mendigos mesmo que acabam ali, porque é comum que em Varanasi, como os funerais são permanentes, as madeiras das piras funerárias dos mais ricos que não queimam são dadas como oferendas aos mais pobres para que usem em suas respectivas piras. Eles fazem isso porque acham que ajudando outras famílias enlutadas conseguem um bom karma.
Já nas nas aldeias pobres, longe da cidade, a cremação é um problema. Sem ninguém para ajudar, muitas vezes eles acabam jogando o morto direto no rio. Isso não é incomum.
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Nos lugares onde o rio sagrado se represa existe até uma estranha profissão – o colecionador de cadáveres.
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São homens que nadam no rio, ou vão de barco e recolhem os corpos, por necessidade. Em alguns casos é preciso entrar na água. Em seguida, eles amarram o cadáver a uma laje de pedra bem grande e afundam o defunto. Eles fazem isso porque que nem todo o corpo pode queimar. É proibido cremar um sadhu, porque eles se recusaram a trabalhar, não tem família, sexo e abandonaram a civilização, dedicando toda sua vida à meditação. Não pode queimar as crianças menores de 13 anos, pois acredita-se que seus corpos são como flores. Assim como é proibido queimar mulheres grávidas, já que elas levam crianças em seu ventre. Também não pode cremar leprosos. Todas estas categorias de mortos são amarrados a uma pedra grande e lançados no rio Ganges ainda “crus”. Eventualmente eles se soltam do fundo e saem boiando por aí, estufados e cheios de gases como balões, ao sabor do vento. Os corpos desaguam nas praias das margens, onde viram até comida de animais, e -acredite se quiser, de gente!

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Curiosamente, também é proibido cremar os mortos pela picada de uma cobra venenosa, que é um tipo de morte bem comum na Índia. Isso é assim porque acredita-se que a mordida de certas serpentes não causam a morte, mas o coma (e estão certos).
É difícil saber se um morto está morto mesmo ou apenas gravemente paralisado pelo veneno. Portanto, para esses, eles fazem um tipo de jangada com troncos de bananeira e enrolam o corpo em alumínio. No barco vai uma placa com o nome do morto e seu endereço. O barco é solto para descer o rio. Meditando sobre as margens, os sadhus tentam usar a meditação para trazer essas pessoas de volta à vida. E o pior é que às vezes elas voltam mesmo!
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Kashi Baba, um dos moradores da área, conta que:
“Quatro anos atrás, a apenas 300 metros da Manikarnika eremitas capturaram um corpo revitalizado. A família ficou tão feliz que queria tornar o sadhu rico, mas ele se recusou, porque se aceitasse uma rúpia sequer, iria perder todo o seu poder”.
Eles também não queimam animais, porque para eles, os animais são símbolos dos deuses. Mas o que pode parecer bem chocante é saber que existiu até relativamente pouco tempo, a tradição assustadora do sati. A queima de viúvas!
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Se o seu marido morria a esposa era obrigada a queimar no fogo junto. Não é mito nem lenda! De acordo com a Kashi Baba, este fenômeno foi predominante até cerca de 90 anos atrás.

De acordo com os livros didáticos, as leis locais proibiram a queima de viúvas em 1929. Mas episódios de sati ainda acontecem hoje! Mulheres choram muito, então elas não estão autorizadas a estar perto do fogo.
No início de 2009, os homens permitiram o acesso à pira onde queimava seu marido a uma viúva de Agra. Ela disse que queria dar um último adeus ao seu marido. Consternados, ninguém teve coragem de impedí-la. Assim, antes que pudessem agarrá-la, ela saltou sobre a pira que queimava violentamente e se agarrou ao corpo do marido. Ela gritava desesperada e ninguém conseguiu desgarrá-la do morto. Ela morreu carbonizada antes da chegada dos médicos, cremada na mesma pira que seu marido.

Sinistro, né?


A Margem oposta

Na outra margem do Ganges há extensões desérticas. Não é um lugar recomendado para turistas, porque é uma área perigosa. É no lado oposto do Ganges que lavam roupa e tomam banho os que acabaram indo parar lá. Em meio as areias sujas de lama e lodo, detritos e ossos, uma cabana solitária feita de galhos e palha desponta.
Lá vive um sadhu eremita com o nome divino de Ganesh. Ele se mudou para o lugar, vindo da floresta afim de realizar o ritual puja – de queimar nos produtos no fogo, como um sacrifício aos deuses. Durante um ano e quatro meses, ele queimou 1,1 milhão de cocos e uma quantidade impressionante de petróleo, frutas e outros produtos.

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Não longe dali, pode-se ver cães dilacerando restos de um corpo humano depositado na praia lamacenta pelo rio. Algumas vezes, surgem chars no rio.

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Os chars são ilhas temporárias formadas pela deposição de sedimentos que sofreram erosão a partir das margens do rio, Há lugares onde eles surgem sempre, e outros com alguma intermitência. Cada char é utilizado como moradia para até 20.000 pessoas.

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Seu solo é extremamente fértil, (também, com tanto defunto no rio, me espantaria se não fosse) e graças a isso, pode sustentar plantações ou servir como pasto para o gado. Porém, o Char pode desaparecer em questão de algumas horas, em consequência de alguma movimentação excessiva na correnteza, especialmente durante a estação das monções, quando chove sem parar por meses.

Os habitantes dos chars são refugiados de Bangladesh ou bengaleses, porém o governo de Bengala Ocidental não reconhece sua existência nem lhes concede documentos de identidade para que possam emigrar ou obter empregos em outros locais. O saneamento nestas ilhas é extremamente precário, e os seus moradores não possuem assistência sanitária; a escolaridade também não lhes é acessível, e o analfabetismo é crônico. Mas veja que curioso, mesmo sem dar nada, o governo, no entanto, exige dos moradores das ilhas o pagamento de impostos.


Cronologia da morte

Se uma pessoa morreu em Varanasi, é queimada em 5 a 7 horas após a morte. A razão para pressa – o calor.

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O corpo é lavado, massageado com uma mistura de mel, iogurte e de uma variedade de óleos e então lêem o mantra. Tudo isso a fim de abrir os sete chakras. Em seguida, o morto é enrolado em uma especie de lençol branco e este em outro de um tecido decorativo.

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O corpo é então colocado numa maca feita de sete travessas de bambu – também sobre o número de chakras.
Os membros da família levam o corpo para o Ganges e cantam um mantra específico para garantir que na próxima vida, corra tudo bem. A maca é então mergulhada no Ganges.

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Então, o rosto é descoberto e os parentes aspergem com água por cinco vezes. Um dos homens da família se veste de branco.
Se é o pai que morreu, ele deve ser o primogênito. Se é a mãe, deve ser o filho mais novo. É esta pessoa de branco o responsável por inflamar o fogo sagrado com uma tocha, que passará ao redor do corpo cinco vezes. Isso é porque cada passagem vai para um dos cinco elementos: água, terra, fogo, ar e céu.

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Muitas vezes o fogo não consome a pessoa inteira e é preciso incentivar a fogueira.

Varanasi mesmo já queimou. O lugar foi um centro acadêmico, bem como religioso. Na cidade havia muitos templos, universidades e ali edificaram grandes bibliotecas, abertas aos textos védicos. No entanto, a maior parte das construções mais antigas da cidade foram destruídas por invasões muçulmanas. Em 1300, a cidade sofreu um grande saque por tropas do Afeganistão. Mais tarde, no século XVII, Benares (o antigo nome da cidade) foi atacada pelo imperador Mughal Aurangzeb, que intencionava extinguir o hinduísmo. A cidade sobreviveu a ambos os ataques, mas não sem marcas indeléveis.
Centenas de igrejas foram destruídas, fogueiras com manuscritos inestimáveis queimaram dias e noites. Até pessoas foram queimadas.

Mas o espírito da Cidade Eterna não foi vencido, e é possível sentir isso nos ghatam ( degraus de pedra ) no rio Ganges.
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Entre mortos e doentes, crianças ainda brincam de correr em meio à fumaça das piras funerárias e os cliques dos turistas. Discussões, gritarias, buzinas, cânticos, rezas e o permanente estalar do fogo.  Vacas caminham impassíveis em meio ao caos. A cidade viceja. Como em nenhum outro lugar do mundo a morte é uma presença tão corriqueira do dia-a-dia urbano quanto na cidade sagrada de Varanasi, e ao que parece, ainda será assim por alguns milhares de anos.

Fonte(s)  masterok, vocativ, wikipedia  via  mundogump
Capa Varanasi, via kuoni.uk